Anjos

By Marlise Vidon - 9/13/2022 08:44:00 AM

O plantão seguia como de costume. Médicos conversando assuntos amenos para tirar o foco do stress de um pronto-socorro. Se tocava a sirene imediatamente os profissionais responsáveis se apresentavam para o atendimento de emergência.

O Hospital foi inaugurado às pressas em benefício de algum político, em ano eleitoral. O bloco cirúrgico não estava equipado e casos que precisassem de cirurgia, eram encaminhados a outro Hospital de referência.

Primeiro toque de sirene, uma crise hipertensiva. Depois um quadro convulsivo. Novo toque de sirene.

Era uma criança de camisola branca com uma “bala perdida” em seu tórax. Rapidamente os profissionais foram socorrer a criança, que precisava ser operada com urgência. O sangue jorrava pelo orifício de entrada da bala no peitinho da criança. O clínico tentou conter o sangramento até que o cirurgião equipasse a ambulância para o transporte de emergência. Pediatra solicitou bolsa de sangue, enfermagem puncionou acesso, colocou oxigênio, tudo em vão. Segundos de horror se passaram, sangue por todo lado e o desespero estampado no olhar e nas atitudes dos profissionais. Foi quando a menina olhou para aquele monte de gente de branco em cima dela e perguntou:

- Eu morri? Estou no céu? Vocês são anjos?

Cirurgião e clínico desataram num choro doído, enquanto os olhinhos da menina foram ficando distantes, lívidos, até se apagarem.

Ela os viu como anjos, quando na verdade ela era o anjinho que se foi para longe da ambição dos políticos e da impotência dos médicos. Se foi como uma nuvenzinha e se misturou ao céu. Não teve chances de ser salva. Bateu asas e voou.

Nunca mais o plantão foi o mesmo. Médicos se demitiram. O Hospital foi equipado adequadamente.

No chão do pronto-socorro ficou o sangue da menina misturado às lágrimas de quem até hoje chora por ela.

Ficou também a esperança de que no amanhã, os homens que detém o poder trabalhem pelo próximo e não pelos próprios interesses, porque tudo na vida tem consequências.

Ficou ali no chão o sentimento de que anjos existem e por vezes se disfarçam de menininhas de camisola branca. Dizem que eles às vezes passeiam na terra, para depois brincar com Deus no céu.





Antônio Osmar Alves

  • Share:

You Might Also Like

0 comments