Golvarenga

By Marlise Vidon - 8/11/2023 06:43:00 AM

 Começaremos a narrativa no momento em que chegou do DETRAN uma correspondência comunicando ao pai, já com seus 85 anos, o vencimento de seu exame oftalmológico. Foi solicitado novo exame em clínica habilitada para renovação de sua carteira de motorista.

Nossa família não queria que pai renovasse a carteira. Ele acertou a traseira de uma carreta parada ao abastecer seu carro. De forma semelhante, bateu no carro da dona de uma papelaria da nossa cidade.

A coisa estava tão caótica que um amigo da família, guarda rodoviário muito respeitado por todos, sugeriu que nosso velho pai não dirigisse mais. Ele virou um risco ao trânsito local.

Munidos de laudo médico que desaconselhava pai de dirigir por patologias diversas, procuramos a clínica indicada. Antes da data do tal exame, pedimos para conversar com o médico responsável. Expusemos a situação. Por certo pai passaria no exame, pois sua visão estava boa. Ruins estavam seus reflexos e raciocínio.

No dia e hora certinhos indicados, pai compareceu para o "exame de vista". As letrinhas eram microscópicas, o coitado passou um aperto danado, não conseguiu ler quase nada e foi reprovado.

Chegou em casa revoltado, esbravejando, dizendo que as letras eram menores que formigas. Se sentiu humilhado por não ter passado no exame. Confesso que tive uma pena enorme dele porque de certa forma, fiz parte daquela sabotagem.

Por meses o ouvi dizer que queria fazer outro exame de vista, voltar a dirigir. Mas aos poucos foi se conformando e o gol GTI 1995 foi ficando na garagem.

Pai achava que era só colocar água  e combustível, não cuidava do carro. O resto ele resolvia na oficina do João Preto, seu amigo e maquiador das mil barbeiragens que ele fez na vida de motorista. O Gol que foi comprado 0 Km foi sendo esquecido. 

Com o tempo, pai foi piorando seu estado de saúde, sem nunca ter perdido seu bom humor. Ele vinha à minha casa diariamente, já com a ajuda de um andador. Passávamos as tardes juntos, hora jogando buraco, hora balançando na rede que dizia ser sua. Sempre que a memória ajudava, dizia que queria consertar o carro. Impressionante, ele não se esquecia do seu Golzinho. Ouvi essa frase até meses antes dele falecer.

Hoje escrevo com saudades dele, falecido há 5 anos. Sua lembrança é uma constante em minha vida. Após sua morte, minha mãe disse que mandaria o Gol para o ferro velho, pois além de não funcionar, ocupava espaço na garagem dela. Foi assim que o Gol veio parar na minha garagem, como presente de minha mãe.

O tempo todo eu olhava para o Gol e ouvia: "quero consertar o carro".

Certo dia, ao ligarmos o carro, ele pegou fogo. Tivemos que rebocá-lo para oficina. Desse dia em diante, o desejo do Zé Alvarenga virou algo imperativo na minha vida.

Tudo precisava ser trocado. Absolutamente nada funcionava. 

Começamos a maratona. Troca isso, aquilo... e o carro voltou a andar. Viva!

Mais e mais reformas vieram à seguir. Por último, a cirurgia plástica. Ele foi para lanternagem e voltou novinho em folha. Impressionante como ficou lindo!

Sei que meu pai não está mais aqui, mas só de pensar no quanto isto o faria feliz, me encho de alegria. Posso ver meu pai em cada canto desse carrinho. Os 29 anos de vida em nossa família deram a ele o status de ter o sobrenome do meu pai, para sempre: Golvarenga.

Onde estiver, te amo pai!


Texto escrito por Denise Vidon, minha irmã, em homenagem ao nosso pai.
Edição: Marlise Vidon




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