O milagre do corona

By Marlise Vidon - 8/12/2022 09:49:00 AM


Presto atendimento semanal ao Lar dos Idosos. O mesmo foi fechado às visitações desde que foi instaurado o isolamento social, em março de 2020. Só entravam funcionários devidamente paramentados.

   Dona Carminha reside no Lar desde nova. Foi pra lá com sua mãe por questões sociais e hoje, com mais de 70 anos, é uma das moradoras mais antigas. Chamá-la de problemática é pouco, já que ela atormenta a vida dos funcionários, reclama de tudo e de todos. Fica de prontidão na porta do pequeno consultório no dia do meu atendimento, com seu rosário de queixas e dores. Sempre a ouço, tentando atender às suas demandas, por mais fantasiosas que sejam. A enfermeira, por detrás dela, gesticula durante suas mentiras completando a cena, opps, consulta. Quando estou de bom humor consigo confortá-la, ouvi-la com paciência, sempre agarrada com Deus para aguentar. Mas há dias em que a gente acorda assim, meio enviesada. Aí é dureza! Ela queixa-se de dor para todos os lados, quer tomar remédios e reclama se os prescrevo, fala mal dos funcionários e por fim, me mostra suas bonequinhas. Como não teve filhos, Dona Carminha coleciona bonecas. Como as trata bem, suas filhinhas. 

   Quando cheguei para meu atendimento semanal estava de peito aberto para a Covid-19, com a coragem e a humanidade que a situação pedia, mas com medo de que tal "bicho" me espreitasse na esquina. Como sempre faço, entrei e cumprimentei os que estavam na área de TV - alguns poucos, os mais corajosos. Os demais estavam em seus quartos. Segui para o consultório, já aguardando a visita certa de Dona Carminha. E lá vieram os idosos, com queixas variadas. Depois as receitas, os exames para avaliar. A discussão dos casos mais complexos e o suquinho. Pronto, tudo certo. Nenhum idoso com quadro gripal, para nossa alegria. Notei que faltava algo, ou melhor, alguém. Cadê Dona Carminha?

   Preocupada perguntei à enfermagem por ela. Falaram que estava bem.

   Consegui avistá-la e fui ao seu encontro. Foi quando ela gritou: "Doutora, pode ficar aí, hoje estou ótima, sem sentir nem uma dorzinha". Todos nós ficamos surpresos e caímos na gargalhada, pois percebi que eu mais parecia uma ET com os equipamentos de proteção.

   Saí de lá sem me conter porque enfim, Dona Carminha estava bem. Tudo que não consegui fazer em anos, a Covid fez em 1 dia, o que para mim foi o único milagre feito pelo vírus já visto.

   

Obs.: Dona Carminha é nome fictício




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