Doce e espirituosa por natureza,
me contou sua vida. Hoje idosa, com família criada e viúva.
Na adolescência se apaixonou.
Namoraram por anos, mas a vida lhe pregou uma peça. Ainda apaixonada pelo
namoradinho, teve que se casar com outro homem, por motivos diversos. Também
largou o emprego, a pedido do marido. Sempre foi moderna e inteligente, na
ocasião quase nenhuma mulher trabalhava.
Tinha uma caixinha de recordações
do namoradinho e por vezes, olhava com lágrimas e saudades os bilhetes e
declarações de amor.
Engravidou do primeiro filho,
depois do segundo e terceiro, todos saudáveis. A vida de casada era dura, cheia
de dor e desavenças. Prosseguiu com dignidade, agarrando-se a Deus e tirando o
doce de sua amarga vida.
Estava cheia de insônia e dores,
não aceitou o meu diagnóstico. “Como posso ter depressão se me conformei
plenamente com minha vida e as escolhas que não pude fazer? Sou uma mulher de
fé e hoje vivo feliz e em paz".
E lá fomos nós para sua
adolescência e sua caixinha de recordações.
- Quando engravidei, tive que
quebrar a caixinha e foi como se algo quebrasse em mim. Joguei fora os sonhos
de menina e fui viver minha vida. Ele, o namoradinho, ficou solteiro por anos.
Casou-se bem mais tarde, teve filhos, dizem que não foi feliz. Morreu há alguns
anos.
Uma idosa sábia e divertida,
cheia de dores. Senti que suas dores vinham da caixinha quebrada. Dos sonhos
que deixou pelo caminho.
- - Mas a senhora amou esse garoto? Foi “seu amor”?
- -Vai saber. Naquela época a gente não conhecia direito a pessoa, namorava só no sofá, com os pais vigiando. Mas éramos doidos um com o outro. Infelizmente nunca amei meu marido, hoje também falecido. Não tive mais ninguém. Vai ver o namoradinho foi meu amor, mas não pude viver a realidade de um relacionamento com ele. De certa forma amei meu marido, um amor de respeito e aceitação. Construímos uma família maravilhosa. Mas o outro foi o sonho, a caixinha perdida no caminho.
- - Se arrependeu? - perguntei
- - Claro que não! Faria tudo que fiz, pela família
que tenho.
- - Então hoje a caixinha quebrada são suas
lembranças, as dores do amor que não viveu. Além das dores causadas pela
artrose, claro. Ela significa tudo que teve que abrir mão pela sua família.
Ainda está aí dentro, quebrada, doendo.
- - Então tá, pode me dar esse antidepressivo que
irei tomar.
E lá se foi ela, irradiando paz,
iniciar a contragosto a medicação. Viúva do marido e dos sonhos que se perderam
nos anos, dentro da caixinha quebrada, guardada no peito.